Em revista de circulação nacional, dessas que tratam da História, pretendendo traduzir as lições dos intelectuais e acadêmicos para o leitor comum, deparo-me com a chamada relativa à Igreja Católica: da intransigência ao diálogo.
Pela construção do título, a impressão passada é de que, se nos séculos precedentes, com destaque ao período XV-XIX, a Igreja foi intransigente, mostrou-se, na segunda metade da centúria de número XX, mais aberta ao diálogo com os que não comungam de sua fé. Assim, forma-se no leitor a idéia de que a Igreja “antiga”, “de antes”, “tradicional”, ou “pré-conciliar” era dura demais, e de que a “nova”, sim, é moderna. Mais do que isso, abre as portas para outra tese, a de que a Igreja muda, crê de tal modo num instante e de outro num distinto momento. A partir daí, é evidente que alguns serão levados ao seguinte raciocínio: a Igreja “de antes” era intolerante, e a “de hoje” dialoga; ora, isso demonstra que ela mudou; logo, os pontos por ela sustentados que ainda não modernos o suficiente (condenação do aborto, da eutanásia, da desvinculação entre os fins unitivo e procriativo do Matrimônio, da morte de embriões, e da união entre pessoas do mesmo sexo; a negação da ordenação às mulheres; a infalibilidade papal etc) podem, um dia, ser mudados; e, se podem, é direito dos descontentes lutar por tal mudança.
Ocorre que essa operação é uma falácia. Ambas as premissas estão erras (e para caracterizar a falácia bastaria uma), contaminando o teorema, a conclusão e, enfim, todo o silogismo. A Igreja não muda, pois é a depositária da Revelação divina, e Deus não muda. Concedamos para fins de debate que ela esteja errada e não seja a instituição fundada e querida por Cristo. Ainda assim, por crer-se infalível e dirigida por Deus, não mudaria, pois resultaria em confissão de sua falibilidade, restando não mais haver razão de existir. Tem, ao menos, direito de portar-se de modo coerente: se defende não errar e possuir a correta doutrina, natural que a mantenha intacta.
Não há uma Igreja intolerante e uma Igreja do diálogo. Há, isto sim, situações que exigem da Igreja intolerância e situações que exigem diálogo. Antes de excomungar Lutero, v.g., o Papa Leão X travou intenso diálogo com ele, procurando sua emenda. Intolerante foi com o pecado, mas dialogou com o pecador, como é atestado pela Bula Exsurge Domine. A defesa do dogma e da moral requer firmeza, pois a verdade não pode ser sacrificada em nome da caridade. Já o modo de transmitir o dogma e a moral pode ser adaptado às circunstâncias, uma vez que também a caridade não pode ser sacrificada em nome da verdade. Caridade e verdade andam lado a lado, e algumas vezes é pedido da Igreja uma postura mais firme. Outras, o diálogo é a melhor resposta, sem, contudo, mutilar-se a doutrina. Não podemos confundir mudança de visão pastoral e de diplomacia (que podem ser alteradas) com mudança doutrinária (impossível, face à sua indefectibilidade). Na pregação da verdade, pode a Igreja ser intransigente ou propensa ao diálogo, segundo as necessidades; quanto à verdade, em si, sua defesa sempre requer intransigência, como ensinado pelo Cardeal Pie em seu sermão na Catedral de Chartres, em 1841: “Recriminar à Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua afirmação absoluta em matéria de doutrina é dirigir-lhe uma recriminação muito honrável. É recriminar à sentinela ser muito fiel e muito vigilante, é recriminar à esposa ser muito delicada e exclusiva.”
Se no século XIX, por exemplo, a Igreja mostrou-se mais dura foi para fazer frente às táticas de seus inimigos. Hoje ela não renuncia à batalha. Apenas faz do diálogo mais uma arma, sem renúncia à sadiamente intolerante defesa da verdade. E, desse modo, com ou sem seguidores, continua fiel a Deus e a si mesma.
Um comentário:
Rafael,
Mais uma vez deixo meu comentário, como não poderia deixar de fazê-lo, no sentido de agradecer-lhe - por compartilhar conosco suas idéias e seus ideais, através da excelência de seus artigos. Sua clareza e cuidado histórico fazem deles uma referência!
Cordialmente,
Marina
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