domingo, fevereiro 19, 2006

Os erros de Veja sobre a encíclica papal

Em sua edição de 1o de fevereiro passado, a revista Veja, tratando da primeira encíclica de Bento XVI, comete uma série de erros (cf. “É o amor...”, p. 102), os quais pretendo refutar.

Insinua, antes de tudo, o conhecido magazine uma suposta diferença de temperamento entre o antes Cardeal Ratzinger e o agora Papa Bento. Aquele um linha-dura, um inquisidor, um defensor da ortodoxia, um intransigente, um intolerante, “uma fera”, no dizer do próprio semanário. Coroado Pontífice, mudou-se em um afável senhor, um delicado teólogo, um elegante poeta, em “uma doce criatura”, ainda conforme Veja.

Nada mais absurdo. Ratzinger não mudou. Continua protegendo a ortodoxa doutrina católica. E isso é ótimo! A dureza combina bem com a delicadeza, a intransigência com o diálogo. Há situações que exigem do Papa firmeza, outras tolerância. O Papa continuará sendo o defensor da Fé, o linha-dura se assim quiserem denominar. Sua missão não é capitular nos dogmas e na moral, mas defendê-la, guardá-la, transmiti-la. Precisando usar de dureza para isso, o fará, graças a Deus.

Por outro lado, se o Papa continua “uma fera” no campo da Fé, nunca o foi em outros terrenos. Os que apresentam Ratzinger como um antipático e incapaz de dialogar estão simplesmente enganados.

São duas circunstâncias distintas! Ao contrário do que a maior parte da imprensa mostra, o Cardeal sempre foi extremamente gentil, sorridente, educadíssimo e um refinado pensador. Nunca se negou a uma boa conversa, e era amante do direito do defesa (que ele concedeu, sim, ao ex-frei Leonardo Boff). Unânime tal juízo entre os que o conhecem desde o cardinalato. Se usarmos as expressões da revista, Ratzinger não se converteu em uma doce criatura, pelo modesto fato de que já o era.

Ao lado dessa docilidade no trato social, Ratzinger era duro. Todavia, duro com o erro, com o pecado, não com o pecador. Como falei: situações distintas. E estas pedem respostas distintas. Qual mãe de família, das mais frágeis, meigas e carinhosas, não se transforma em uma bravia guerreira para defender seus filhos? A imprensa exagera a combatividade do então Cardeal, esquecendo sua doçura; e também a doçura do hoje Papa, ignorando a combatividade que, ainda bem, persiste.

Bento XVI nem era antes só uma “fera” nem agora só um “doce”. Ele é o Papa: “doce” quando necessário, “fera” quando preciso. E nisso não existe mudança, repito, pois desde os tempos em que era Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (e antes mesmo, quando Bispo e presbítero), Joseph Ratzinger conjugava a doçura pessoal com a combatividade da missão.

Outro erro na reportagem é a surpresa diante do tema da encíclica, como se o amor fosse estranho à Igreja. Lendo o documento, temos uma prova claríssima de que ele é a base da Igreja. Só o preconceito contra a necessária dureza de Ratzinger é que impede os jornalistas de ver com naturalidade o assunto do amor em um trabalho de seu punho. Nos livros que escreveu quando era Cardeal, o alemão já acentuava o tema do amor. Quantos, entre os que comentam sobre o Papa, já os leram? Aliás, leram a encíclica em questão?

Ainda um terceiro erro. Mencionado o tópico da Encíclica Deus Caritas Est que discorre sobre o amor carnal, Veja alfineta: “Se o assunto é complicado para qualquer pessoa, imagine-se para o chefe de uma igreja que, como ele reconhece indiretamente, historicamente tratou o corpo como inimigo da alma.” Aqui a revista se supera: tal terceiro erro consegue desdobrar-se em dois! São duas mentiras em uma!

A Igreja nunca “tratou o corpo como inimigo da alma”. Sua doutrina é clara em afirmar que são uma só unidade substancial. Não fosse assim, não creríamos na Encarnação. Como a Igreja trataria o corpo como inimigo da alma, se ensina que o Verbo, o Filho de Deus, Se fez carne? Deus assumiu não só uma alma humana, em Cristo, mas também um corpo humano. E após Sua morte, Cristo ressuscitou, i.e., reuniu corpo à alma. Também nós ressuscitaremos um dia. Como a Igreja trataria o corpo como inimigo da alma, se ela afirma que nos últimos tempos eles se reunirão? Se o corpo é inimigo da alma, a felicidade estaria na sua libertação daquele. E não é o que cremos, e sim “na ressurreição da carne”. Como a Igreja trataria o corpo como inimigo da alma, se uma de nossas mais preciosas verdades é a de que a hóstia consagrada é o Corpo de Cristo? Adoraríamos o Corpo de Cristo, se ele fosse inimigo da alma?

O que a Igreja Católica ensina é a subordinação do corpo à alma, a sua inferioridade em relação a esta. Corpo é matéria, e a alma a forma do corpo, o que lhe dá coerência. O corpo é inferior à alma. Sem embargo, ser inferior não é ser inimigo. Pelo contrário, ainda que inferior, faz parte de uma única substância. Corpo e alma não têm sentido separados: é a morte. Tanto que voltarão a união no Juízo Final. Nisso não precisa crer Veja. Mas seria correto reconhecer que este é o ensino da Igreja, e não, segundo faz crer o artigo, uma suposta inimizade entre forma e matéria, entre alma e corpo. Veja não precisa ser católica. Deve, todavia, expor o que crê a Igreja Católica de modo verdadeiro, e não inventando mentiras.

Quiséramos ser mais dóceis com Veja, porém, diante do que acabamos de expor, não vemos outro rótulo para caracterizar sua acidez contra a Igreja do que o de pouca honestidade intelectual. Falta à verdade é pecar contra a caridade... E caridade é o tema da encíclica.

De outra sorte, Veja mente ao dizer que o Papa reconhece que a Igreja tratou o corpo como inimigo da alma. E toma por base o texto do próprio documento do Santo Padre: “Hoje não raro se reprova ao cristianismo do passado ter sido adversário da corporeidade; de fato, sempre existiram tendências nesse sentido.”

Quanta distorção das palavras do Sumo Pontífice! Veja força um entendimento, empresta ao texto um sentido que não resiste à mera leitura do mesmo.

Em nenhum momento, reconheceu o Papa que a Igreja tratou o corpo como inimigo da alma. Não há essa expressão ou semelhantes. Simplesmente, o Papa dá dois dados. O primeiro é que se tornou moda acusar a Igreja de inimiga do corpo (e assim o Papa está atacando a própria revista Veja!). Bento XVI defende a Igreja, mostrando como alguns querem passar a mensagem de que o cristianismo em algum momento pregou ser o corpo inimigo da alma – um erro manifesto, como vimos. Ora, Veja mesmo encontra-se, como lido acima, entre esses “alguns”. A citação do Papa é, pois, um tiro no pé.

O segundo dado é o reconhecimento não de que a Igreja tratou o corpo como inimigo da alma – pois não se reconhece o que nunca aconteceu –, mas de que “existiram tendências nesse sentido”. Muito diferente! Também hoje existem “tendências” para ordenar mulheres, para liberar o aborto, para um falso ecumenismo, e nem por isso representam a doutrina da Igreja. “Tendências” não são o Magistério. Se, no passado, um Bispo Tal defendeu a tese X, nem por isso tornou-se o ensinamento eclesiástico oficial. O que o Romano Pontífice quer dizer – e isso está cristalino, exceto para Veja – é que no meio do trigo há joio, na melhor tradição cristã.

Por último, o erro grotesco do derradeiro parágrafo do artigo do conceituado hebdomadário. Segundo a revista, a encíclica deveria ter sido publicada antes, e a demora deu-se porque Bento XVI “não conseguia conciliar os dois temas, o amor e a caridade.” Como assim, dois temas? A redação de Veja está mal-informada: amor e caridade são a mesma coisa. São sinônimos. Tanto que os textos clássicos de “atos de caridade” (orações conhecidas por todos os católicos) têm por conteúdo demonstrar nosso amor a Deus e ao próximo. Os dois preceitos da caridade, por sua vez, rezam que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, com todo o nosso coração, toda a nossa alma, todo o nosso intelecto, e todas as nossas forças, e ao próximo como a nós mesmos, por causa de Deus. Caritas e amor são a mesmíssima coisa. Todos – literalmente todos – os teólogos ensinam a sinonímia.

Não é preciso, entretanto, ir à teologia. Basta um conhecimento rudimentar da língua portuguesa para saber que amor e caridade não são “dois temas”, mas duas palavras para descrever idêntico sentido, dois vocábulos para a mesma significação. E, ao contrário do que (des)informa Veja, não “acabaram ficando separados” na encíclica, pois não se pode separar o que é único. A separação de tratamento se deu entre amor divino e amor humano. Ambos, porém, são amor, ambos são caridade, ambos são a mesma coisa.

O Papa não surpreendeu os católicos. Surpreendeu, no máximo, os que nada entendem das coisas da Igreja, sempre ávidos na inútil tentativa de desestabilizá-la, pois não sabem que as portas do inferno não prevalecerão!

6 comentários:

Anônimo disse...

Rafael,

Seu artigo de refutação está simplesmente, lindamente irretocável!! Quem é a Veja para se arrogar o direito de escrever sobre uma encíclica de SS Bento XVI!!?? Estas pessoas perderam o senso de ridículo! A Veja não sabe o que é encíclica, não sabe o que é *Papa* e muito menos o que é Igreja... mas estão lá "analisando a primeira encíclica de Bento XVI".
Seu artigo está uma pérola e muito apropriado!!!
(Tenho um sentimento quase pessoal por SS Bento XVI. E quando penso nele ainda penso como "o cardeal Ratzinger" a quem eu tinha tanto carinho e lia tudo que era possível (traduções) de seus escritos. Não sei de onde estas pessoas tiram idéias que aquele homem não pudesse falar de amor,ou que para Igreja o corpo é inimigo da alma, etc!!??
Parabéns e mais parabéns por sua refutação destes absurdos e também por estar atento a isto!
Um cordial abraço,
Marina

Carlos Kramer disse...

Veja, na melhor tradição retórica (pra não dizer erística) brasileira, fabricou um boneco de palha e o chutou, dizendo ser o boneco a própria Igreja. Eles simplesmente puseram de pés para o alto duas das maiores crenças cristãs, e você os rebateu bem, ainda que da única forma possível, informando que eles estão muito mal informados. O problema é que esse bando de jornalistas ignorantes não entendem nada de cristianismo. O máximo que conseguem é imitar mal e porcamente o ponto de vista deformado de Nietzsche.
Espero que tenhas enviado o teu texto para eles.
Abraços,
Carlos Kramer

Anônimo disse...

Caro Rafael,
estou a ler seus textos. Gostei-os deveras. deixei um comentário no artigo do Aquino. Dê uma olhada.
Um abraço.

Anônimo disse...

Li seu texto sobre Boff e a igreja. Muito bom. Gostei. Um abraço.

Anônimo disse...

Caro amigo, parabéns pelos maravilhosos escritos.

Unknown disse...

Gostei dos seus escritos... Parabéns! Estou fazendo uma pesquisa sobre religião católica e educação entre os anos de 1946 a 1961, mais especificamente sobre a disciplina religiosa (disciplina corpo)a partir das prescrições de encíclicas e outros documentos da Igreja Católica para o período... Caso você tenha algo,e puder repassar, é claro, ficarei grato... Saudações...

Cân. 750 – § 1. Deve-se crer com fé divina e católica em tudo o que se contém na palavra de Deus escrita ou transmitida por Tradição, ou seja, no único depósito da fé confiado à Igreja, quando ao mesmo tempo é proposto como divinamente revelado quer pelo magistério solene da Igreja, quer pelo seu magistério ordinário e universal; isto é, o que se manifesta na adesão comum dos fiéis sob a condução do sagrado magistério; por conseguinte, todos têm a obrigação de evitar quaisquer doutrinas contrárias.

§ 2. Deve-se ainda firmemente aceitar e acreditar também em tudo o que é proposto de maneira definitiva pelo magistério da Igreja em matéria de fé e costumes, isto é, tudo o que se requer para conservar santamente e expor fielmente o depósito da fé; opõe-se, portanto, à doutrina da Igreja Católica quem rejeitar tais proposições consideradas definitivas.

Cân. 752 Não assentimento de fé, mas religioso obséquio de inteligência e vontade deve ser prestado à doutrina que o Sumo Pontífice ou o Colégio dos Bispos, ao exercerem o magistério autêntico, enunciam sobre a fé e os costumes, mesmo quando não tenham a intenção de proclamá-la por ato definitivo; portanto os fiéis procurem evitar tudo o que não esteja de acordo com ela.