sexta-feira, janeiro 12, 2007

Confusões de fé

Se há uma palavra cujo significado é completamente distorcido por alguns de hoje, essa palavra é “fé”.


Afirma-se, pois, ter fé, “mas não ter doutrina fixa”; ter fé, “mas não ter um sistema religioso”. Demonstração de um total contra-senso. Tais que assim pensam atribuem ao vocábulo “fé” um sentido que não o original e verdadeiro.


Assim, para muitos, fé é acreditar na existência de Deus. Ora, a existência de Deus prescinde da fé. A razão o demonstra. Pela análise das coisas criadas chegamos ao Criador; da ordem natural ao Ordenador; dos seres contingentes ao Ser Necessário; dos móveis ao Motor Imóvel. A inteligência nos diz que Deus existe, antes mesmo da fé. Logo, fé não pode ser simplesmente acreditar na existência de Deus, por vã repetição de termos.


Outros, ainda, dão à fé um conceito de confiança em Deus. Mais um engano! Confiar em Deus é louvável, porém está na esfera de virtude diversa: a esperança. Fé não é confiar em Deus, ainda que seja extremamente meritório fazê-lo. Claro que confio em Deus, eu, este articulista que vos escreve. Todavia, essa confiança, embora dela decorra, não é propriamente fé.


Qual, então, o conceito de fé?


Antes de tudo, o verbete expressa realidades presentes até na ordem secular, natural. A “fé pública” dos atos do tabelião, por exemplo. Ao gênero fé pertencem a fé humana (nas pessoas, na Administração Pública etc) e a fé religiosa.


Em qualquer desses significados, fé é a adesão intelectual ao testemunho de outrem, um saber que é verídico algo que não vi, ciência essa que se processa pela autoridade de quem dá o testemunho ou pela razoabilidade dos argumentos e probabilidade dos acontecimentos. O tabelião, no exemplo dado, presta a um documento sua certificação de que confere com o original a ele apresentado. Pela força da lei, da qual emana a presunção de legitimidade dos atos administrativos, todos podem aderir à veracidade da informação autenticada, saber que ela é verdadeira.


Semelhantemente se processa a fé religiosa. Mais que um crer na existência de Deus (pois a razão, antes da fé, nos diz que Ele existe), ou confiar n’Ele, a fé religiosa é a adesão do intelecto a um testemunho de fundo religioso. No caso da fé católica, é adesão do intelecto, movido pela vontade, a qual é iluminada pela graça divina, ao testemunho de Cristo, i.e., ao que Ele ensinou e ensina por Sua Igreja. Daí que muita fé não é somente muita confiança, mas muita adesão.


“Fé implica doutrina. Doutrina implica proposições!” (Cardeal Newman; Discussions and arguments, 284) Quem se diz de fé católica não a prova com a afirmação na existência de Deus, ou com a confiança n’Ele depositada, e sim com a adesão à proposição do Magistério da Igreja. Católico de pouca fé é aquele que tem pouca adesão, pouca identificação, pouca aceitação do que a Igreja ensina. Católico de muita fé, por sua vez, é quem possui inabalável adesão e aceitação da doutrina (toda) da Igreja.


Não que a muita fé nos faça aceitar a doutrina católica: a aceitação desta é a própria fé! Ter não é pressuposto para aceitar o que ensina a Igreja: ter fé é exatamente aceitar!


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Cân. 750 – § 1. Deve-se crer com fé divina e católica em tudo o que se contém na palavra de Deus escrita ou transmitida por Tradição, ou seja, no único depósito da fé confiado à Igreja, quando ao mesmo tempo é proposto como divinamente revelado quer pelo magistério solene da Igreja, quer pelo seu magistério ordinário e universal; isto é, o que se manifesta na adesão comum dos fiéis sob a condução do sagrado magistério; por conseguinte, todos têm a obrigação de evitar quaisquer doutrinas contrárias.

§ 2. Deve-se ainda firmemente aceitar e acreditar também em tudo o que é proposto de maneira definitiva pelo magistério da Igreja em matéria de fé e costumes, isto é, tudo o que se requer para conservar santamente e expor fielmente o depósito da fé; opõe-se, portanto, à doutrina da Igreja Católica quem rejeitar tais proposições consideradas definitivas.

Cân. 752 Não assentimento de fé, mas religioso obséquio de inteligência e vontade deve ser prestado à doutrina que o Sumo Pontífice ou o Colégio dos Bispos, ao exercerem o magistério autêntico, enunciam sobre a fé e os costumes, mesmo quando não tenham a intenção de proclamá-la por ato definitivo; portanto os fiéis procurem evitar tudo o que não esteja de acordo com ela.