domingo, janeiro 29, 2006

Intransigência e diálogo

Em revista de circulação nacional, dessas que tratam da História, pretendendo traduzir as lições dos intelectuais e acadêmicos para o leitor comum, deparo-me com a chamada relativa à Igreja Católica: da intransigência ao diálogo.

Pela construção do título, a impressão passada é de que, se nos séculos precedentes, com destaque ao período XV-XIX, a Igreja foi intransigente, mostrou-se, na segunda metade da centúria de número XX, mais aberta ao diálogo com os que não comungam de sua fé. Assim, forma-se no leitor a idéia de que a Igreja “antiga”, “de antes”, “tradicional”, ou “pré-conciliar” era dura demais, e de que a “nova”, sim, é moderna. Mais do que isso, abre as portas para outra tese, a de que a Igreja muda, crê de tal modo num instante e de outro num distinto momento. A partir daí, é evidente que alguns serão levados ao seguinte raciocínio: a Igreja “de antes” era intolerante, e a “de hoje” dialoga; ora, isso demonstra que ela mudou; logo, os pontos por ela sustentados que ainda não modernos o suficiente (condenação do aborto, da eutanásia, da desvinculação entre os fins unitivo e procriativo do Matrimônio, da morte de embriões, e da união entre pessoas do mesmo sexo; a negação da ordenação às mulheres; a infalibilidade papal etc) podem, um dia, ser mudados; e, se podem, é direito dos descontentes lutar por tal mudança.

Ocorre que essa operação é uma falácia. Ambas as premissas estão erras (e para caracterizar a falácia bastaria uma), contaminando o teorema, a conclusão e, enfim, todo o silogismo. A Igreja não muda, pois é a depositária da Revelação divina, e Deus não muda. Concedamos para fins de debate que ela esteja errada e não seja a instituição fundada e querida por Cristo. Ainda assim, por crer-se infalível e dirigida por Deus, não mudaria, pois resultaria em confissão de sua falibilidade, restando não mais haver razão de existir. Tem, ao menos, direito de portar-se de modo coerente: se defende não errar e possuir a correta doutrina, natural que a mantenha intacta.

Não há uma Igreja intolerante e uma Igreja do diálogo. Há, isto sim, situações que exigem da Igreja intolerância e situações que exigem diálogo. Antes de excomungar Lutero, v.g., o Papa Leão X travou intenso diálogo com ele, procurando sua emenda. Intolerante foi com o pecado, mas dialogou com o pecador, como é atestado pela Bula Exsurge Domine. A defesa do dogma e da moral requer firmeza, pois a verdade não pode ser sacrificada em nome da caridade. Já o modo de transmitir o dogma e a moral pode ser adaptado às circunstâncias, uma vez que também a caridade não pode ser sacrificada em nome da verdade. Caridade e verdade andam lado a lado, e algumas vezes é pedido da Igreja uma postura mais firme. Outras, o diálogo é a melhor resposta, sem, contudo, mutilar-se a doutrina. Não podemos confundir mudança de visão pastoral e de diplomacia (que podem ser alteradas) com mudança doutrinária (impossível, face à sua indefectibilidade). Na pregação da verdade, pode a Igreja ser intransigente ou propensa ao diálogo, segundo as necessidades; quanto à verdade, em si, sua defesa sempre requer intransigência, como ensinado pelo Cardeal Pie em seu sermão na Catedral de Chartres, em 1841: Recriminar à Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua afirmação absoluta em matéria de doutrina é dirigir-lhe uma recriminação muito honrável. É recriminar à sentinela ser muito fiel e muito vigilante, é recriminar à esposa ser muito delicada e exclusiva.”

Se no século XIX, por exemplo, a Igreja mostrou-se mais dura foi para fazer frente às táticas de seus inimigos. Hoje ela não renuncia à batalha. Apenas faz do diálogo mais uma arma, sem renúncia à sadiamente intolerante defesa da verdade. E, desse modo, com ou sem seguidores, continua fiel a Deus e a si mesma.

sábado, janeiro 21, 2006

Tomás de Aquino, glória da Igreja

O dia 28 de janeiro é a memória litúrgica de Santo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, orgulho da Ordem dos dominicanos, o maior teólogo da Igreja e também seu insuperável filósofo. Entre suas obras figuram a monumental Suma Teológica, a apologética Suma contra os Gentios, o Compêndio de Teologia (um de meus livros de cabeceira), inúmeros opúsculos de doutrina e filosofia, comentários a Aristóteles (de quem foi o grande intérprete medieval, contra Averróis) e a Pedro Lombardo, sermões, catequeses, debates, livros sobre dogma e moral, explicações à maioria dos textos bíblicos, glosas jurídicas, teorias políticas, além da composição de toda a liturgia de Corpus Christi.

Sem dúvida, o gênio do cristianismo!

Não é por outro motivo, exceto a penetração de seu raciocínio e a lógica na exposição de seus argumentos, que a Igreja manda, em seu Código de Direito Canônico, que na formação clerical os alunos aprendam a doutrina “tendo por mestre principalmente Santo Tomás.” (cân. 252, § 3) Norma, bem o sabemos, infelizmente nem sempre obedecida.

Todos os Papas, a partir dele, não cessaram de honrá-lo e recomendar seu método e seu ensino. Destacam-se São Pio V, que em 1567 o declarou Doutor da Igreja; São Pio X, com seu Angelici Doctoris; e Pio XI, o qual dedicou toda uma encíclica, Studiorum Ducem, ao Aquinate. Nela, assim se expressava o Pontífice: “A união da doutrina com a piedade, da erudição coma virtude, da verdade com a caridade, foi verdadeiramente singular no Doutor Angélico (...).”

É em Tomás que se encontra a mais sublime defesa da razão, não como inimiga da fé, mas sua aliada. João Paulo II o sintetizou na sua Fides et Ratio: Santo Tomás “argumentava que a luz da razão e a luz da fé procedem ambas de Deus, e portanto não podem contradizer-se entre si.” (nº 43) Justamente por isso, “a Igreja sempre propôs a Santo Tomás como mestre e modelo do modo correto de fazer teologia.” (Fides et Ratio, nº 3)

O “apóstolo da verdade” (Paulo VI. Carta Lumen Ecclesiae, nº 10) é exemplo não só do pensamento estritamente religioso, como também da aplicação dos ditames da fé à ciência, por meio de sua filosofia incomparável.

Por sua vez, o Concílio Vaticano II, na Declaração Gravissimum Educationis (cf. nº 10), reafirma a autoridade de Tomás. Desde sua morte, outrossim, concílio algum, incluindo-se o acima mencionado, ousou apartar-se de seu magistério, e mesmo o de Trento colocou a Suma, que escrevera com tanto esmero e devoção, ao lado da Escritura para guiar os Padres Sinodais.

Que do céu rogue por nós este servo de Deus, proclamado por Leão XIII padroeiro dos estudantes, na Encíclica Aeterni Patris, onde, enfim, expõe preciosa lição: “Tomás recolheu suas doutrinas e compôs com elas um conjunto orgânico, as dispôs com uma ordem maravilhosa e as acrescentou a tal ponto que se o considera, com razão, como o defensor especial e a glória da Igreja Católica.”


No passo da Igreja

Diante da complexidade do fenômeno Vaticano II e da crise que se seguiu ao Concílio, adotam alguns católicos geralmente uma das linhas abaixo, com maior ou menos nuance:

- ou consideram-no liberal, e, por isso, o criticam acidamente e ao Magistério a ele posterior (os tradicionalistras, afinados com Marcel Lefébvre);

- ou, ainda considerando-o liberal, louvam-no justamente por isso, rechaçando dois mil anos de Magistério, como se a Igreja houvesse sido refundada no período conciliar, sem dar maior importância à Tradição (os liberais, progressistas, modernistas, teólogos da libertação);

- ou, enfim, consideram o Concílio tímido face às mudanças que gostariam fossem operadas, como se devesse “avançar” nas modas teológicas, alinhando a Igreja ao mundo (os ultraliberais, modernistas e progressistas radicais, teólogos da libertação ainda mais raivosos).

Não compactuo com nenhuma dessas correntes. Aliás, os católicos de verdade não podem filiar-se a elas. A Igreja não tem facções. É católica, universal. É una: una na doutrina, e una no governo. O Vaticano II não foi liberal, e tampouco o vejo como isento de termos dúbios. Foi importante, mas a Igreja e sua doutrina são a ele anterior.

Ainda que, em si, o Concílio não seja progressista (pois a Igreja é infalível, e o progressismo um erro), seus textos podem ser distorcidos (e de fato o foram!): para atacar a Igreja “de antes” (liberais) ou “de agora” (tradicionalistas). “Estou convencido”, diz o Papa Bento XVI, “de que os danos não são atribuíveis ao Concílio ‘verdadeiro’, mas ao desencadear-se, no interior da Igreja, de forças latentes agressivas (...), [e] no exterior, ao impacto de uma revolução cultural (...).” (A fé em crise?, p. 17)

Quanto às suas passagens de difícil interpretação, e aparentemente contraditórias com pronunciamentos eclesiásticos anteriores, só ao Magistério cabe a palavra final. No que tem o Vaticano II de clareza, resta-nos o assentimento da fé (devido à suprema autoridade de ensino da Igreja), e a obediência religiosa (devido à suprema autoridade de governo). No que tem de dubiedade, deixemos que a Igreja resolva, ilumine. Não é nossa função criticá-lo, nem interpretá-lo fora da Tradição ou do Magistério (anterior ou posterior).

“(...) defender hoje a Tradição verdadeira da Igreja significa defender o Concílio. (...) É ao hoje da Igreja que devemos permanecer fiéis, não ao ontem nem ao amanhã (...).” (op. cit., p. 18)

Andemos ao passo da Igreja, nem à frente nem atrás. Almejemos estar ex corde Ecclesiae, no coração da Igreja, certos de que agradaremos a Cristo pela doce sujeição ao Seu Vigário, o Papa. Esta a militância genuína que se nos é pedida: a fidelidade e a adesão ao Romano Pontífice e à doutrina de sempre da Igreja, reafirmada (e não negada) pelo Concílio, entendido este, porém, nos seus devidos termos, “[s]em reservas que os amputem. E sem arbítrios que os desfigurem.” (op. cit., p. 18)


segunda-feira, janeiro 02, 2006

Laicidade e Laicismo

Excelente artigo do Pe. Francisco Faus, publicado no site da Quadrante.

Recomendação d'O Ultramontano. Favor não confundir com o NOSSO artigo, denominado "Laicismo e laicidade" (os termos estão, como é visível, contrariamente dispostos).

Cân. 750 – § 1. Deve-se crer com fé divina e católica em tudo o que se contém na palavra de Deus escrita ou transmitida por Tradição, ou seja, no único depósito da fé confiado à Igreja, quando ao mesmo tempo é proposto como divinamente revelado quer pelo magistério solene da Igreja, quer pelo seu magistério ordinário e universal; isto é, o que se manifesta na adesão comum dos fiéis sob a condução do sagrado magistério; por conseguinte, todos têm a obrigação de evitar quaisquer doutrinas contrárias.

§ 2. Deve-se ainda firmemente aceitar e acreditar também em tudo o que é proposto de maneira definitiva pelo magistério da Igreja em matéria de fé e costumes, isto é, tudo o que se requer para conservar santamente e expor fielmente o depósito da fé; opõe-se, portanto, à doutrina da Igreja Católica quem rejeitar tais proposições consideradas definitivas.

Cân. 752 Não assentimento de fé, mas religioso obséquio de inteligência e vontade deve ser prestado à doutrina que o Sumo Pontífice ou o Colégio dos Bispos, ao exercerem o magistério autêntico, enunciam sobre a fé e os costumes, mesmo quando não tenham a intenção de proclamá-la por ato definitivo; portanto os fiéis procurem evitar tudo o que não esteja de acordo com ela.